domingo, 28 de fevereiro de 2010

O avesso


Na mesma linha de criação da agência publicitária que usou o clássico de Kafka "A Metamorfose", a fotógrafa Dina Goldstein desenvolveu esta série de fotos que mostra os populares contos de fada às avessas. São situações onde as princesas enfrentam problemas e parecem ter a vida de pessoas comuns:

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Para conhecer mais sobre Dina e o seu trabalho, visite o site dela: www.dinagoldstein.com

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

BOCAABOCA


Nesses últimos dias eu estava acabado. Comia pouco e mal, praticamente não dormia. Permanecia o dia inteiro parado, sem me mexer nadinha. Ficava por um bom tempo sentado no banco de uma praça, fingindo ler um jornal que fedia a urina de rato. Meu corpo inteiro doía pelas horas e horas que eu passava com a bunda esmagada naquele banco duro e frio de madeira. Eu ficava lá sentado, na praça, talvez porque houvesse um pouco de esperança, mas não a esperança que eu desejava para mim. Era o tipo de esperança que eu esperava findar-se. Aguardava que as crianças parassem de brincar e fossem levadas para casa com um puxão de orelha violento; que os velhos dessem um fim no gamão e nas damas depois de uma tórrida chuva; que os animaizinhos fugissem das coleiras. Talvez eu quisesse ser a estátua daquela praça para que todos depositassem seus olhos em mim. Doce ilusão! Nem sendo uma das mais belas isso aconteceria. Pelo menos riscar-me-iam com pornografia; caralhinhos voadores e bucetas avoadas. Cravariam em mim os nomes dos amores, corações e desenhinhos bregas de quem se apaixona pela primeira vez. Isso eu sei...

Eu realmente odiava aquele jornal fedido sustentado pelos meus dedos sujos. Havia lido aquelas notícias milhares de vezes. Eram as piores notícias possíveis. Minha jaqueta tinha nos bolsos restos de salgadinhos e um pedaço de bolo esfarelado de alguma festa de aniversário. Tirava algumas migalhas e as jogava para os pombos, mas não tudo. Não queria me desfazer completamente dos restos. Isto não tem nenhum significado, acreditem! Talvez, bem no fundo, tenha. Se alguém prosseguir com aquelas análises bichas e intelectualóides, talvez ache algo, mas eu não pensava em nada.

Tudo seguia na tranquilidade doentia de sempre, mas um novo elemento rompeu com aquilo. Algo de novo e de bom e de verdadeiramente esperançoso trouxe anormalidade. Eu ficava olhando para esse algo como o público fita atento a bolinha em uma enérgica partida de tênis. Meus olhos lacrimejavam, fruto da emoção e da falta de piscadas. Era uma boca, maravilhosa, nunca apresentada a este mundo. Tenho certeza de que aquela boca nasceu naquele dia. Escarlate e vívida como o sangue fresco sob a luz do sol, aquela boca tornou-se o meu ponto de referência. Se eu fosse um monitor, sofreria de dead pixels.

Ai! Uma carne suculenta, de primeira, autossuficiente, serelepe, de outro mundo. Era delicada como uma pétala de rosa, trilhada por sulcos quase imperceptíveis mas mais reveladores do que as linhas de uma mão. A linha da vida e da morte, da sorte, na boca. Comecei a poetizar, a filosofar, a tagarelar em meu âmago, a enlouquecer. Obsessão, esta era palavra mais bonita que eu podia pensar.

Tudo sumiu. O blackout da vida se fez de uma vez e os velhinhos, os cachorros, as crianças, os casais, os ônibus, os bancos, os jornais, os sons, os semáforos, os carros, a fumaça, o sol e a lua, tudo, tudo isso transformou-se em plano de fundo; era uma tela borrada na qual cada pincelada não fazia a menor diferença. Havia apenas uma crença, era naquela boca perfeita de nascença.

A boca independente não precisa de sorriso, é sempre aquele morder de lábios indeciso que faz ela ser deslumbrante, que me deixa tão arfante. Podia agora mesmo passar um elefante do meu lado, mas eu continuaria vidrado, olhando para a boca banhada de batom, expressa num só tom. Quem dera eu ter antes conhecido essa boca que jurando fidelidade iria sorrindo para a forca.

Era como uma borboleta de asas imaginárias, que davam seus contornos de tempos em tempos materializadas pelas baforadas quentes em meio ao frio desalentador. Eu poderia ver aquela boca voando até mim em determinados instantes, pairando no ar como um beija-flor totalmente diligente em seu voo.

Com toda paciência do mundo eu esperei. Eu sabia que em algum momento aquela boca estaria no mesmo espaço do ar que me envolve e respiro. Passaram-se dias e a boca permanecia por lá, de longe, fingindo que eu não existia, mas já calculando a hora de aproximar-se. Deduzi que a dona de lábios tão divinos trabalhava naquela região, talvez como uma puta que faz barba, cabelo e bigode, talvez como uma ingênua secretária que foge dos assédios de seu patrão. Só sei que lá estava ela de segunda à sexta, às 9h da manhã. A boca descia do ônibus – que era só uma grande mancha amarela – às 9h da manhã.

Remexendo nos meus bolsos em meio aos farelos de alimentos encontrei um giz de cera. Sabe-se lá o que aquilo fazia no meu bolso. Talvez eu estivesse numa festa infantil. É a explicação mais plausível para os doces, salgados e o giz. Bem, me veio uma ânsia de rabiscar e retratar aqueles lábios suspensos no ar. Por coincidência o giz tinha a mesma coloração escarlate que eu via em minha frente. No jornal fedido e enrugado eu multipliquei milhares de bocas por entre as letras, manchetes, notícias, fotos. Passei por cima de todos os acontecimentos do mundo de 09 de novembro de 1991. O jornal era quase todo vermelho; quase todo sangue. O giz era quase todo nada. Sumiu não minha mão tão inexplicavelmente como apareceu no meu bolso.

Quando voltei à mínima consciência possível, o elemento x vinha até mim. A língua correu pelos dentes como sendo uma preparação. Era eu mesmo? Era minha direção? Com tantos espalhados pelas ruas, vestidos com seus ternos confiáveis, porque ela trilharia o caminho até um aparente mendigo?

“Bom dia. Você pode me informar que horas são?”, perguntou.

Perdi a noção de tempo e espaço. Eu não tinha relógio. Olhei para a torre da igreja: os ponteiros parados. Procurei algo no jornal. Havia apenas um pequeno espaço não rabiscado: 09 de novembro de 1991, “O dia em que eu fiquei mudo”.