quinta-feira, 9 de abril de 2009

A Partir de Agora


Este conto resume bem minhas impressões sobre meu trajeto quase diário à universidade. Coisa que requer de mim um certo esforço emocional.

Chegou a hora. Vejo no relógio. 18:15h. Chegou o momento de sair por aquela porta. Meus cabelos moldados pelo travesseiro, meu eu sem camisa. Alguém que não quer partir, que prefere ficar à deriva de dias lerdos. Vejo em cumprir a obrigação apenas um requinte masoquista. Sem mais resistência, visito o cadafalso todos os dias. Aliso meu pescoço como se nele vivesse uma gravata fantasma que aperta, nunca cede. Entrego-me logo às aulas de Direito, aos dias. Entrego-me logo ao chuveiro. Antes, checo a roupa. Escolho uma qualquer. Ponho sobre a cama.
Desce a água, molha a cabeça, e eu poderia ficar mais. Poderia viver mais sob o chuveiro e achar que é tudo água, que tudo escorre pelo ralo e vai para um esgoto comum. Mas me sinto pressionado. Tenho de ir. Tenho de cumprir logo. Não importa o atraso, não importa a pontualidade. Apenas corro como alguém que anda sem parar. Corro como alguém que vive parado. Correr para sempre é nunca mais se mexer. Fecho o chuveiro, me enxugo, escovo os dentes, passo os dedos entre os cabelos.

Cueca, calça, camisa, meia, tênis. Estou pronto. Até que ponto vestido? Não sei. Abro a porta, despeço-me de minha mãe. Caminho ainda tentando corrigir a postura. Piso os pés na calçada. Sigo o rumo que sobra. Vejo as velhinhas sentadas, conversando sobre o quê? Não sei. Sobre a igreja? Prefiro imaginar que conversem sobre perversidades. Perversidades mais perversas por serem velhinhas. Enfrento o declive. O lava jato, a delegacia, a biblioteca pública. Passo pela luz do poste, sempre olhando em sua direção, ofuscado, quase no mesmo ângulo de visão que tenho da lua. Imagino um eclipse, do meu mundo, pequeno, do poste, com o desconhecido, a atmosfera lunar.

Na rua, os carros passam, as motos cortam o ar, superlotadas, as bicicletas tentam chegar a algum lugar. Espero, me irrito com esse improvável trânsito. Mais velhinhas na calçada, aproveitando a velhice. Como é bom ficar velho. Atravesso a rua, subo alguns degraus da igreja da matriz. Tenho a impressão de que as velhinhas me olham pelas costas, de que se perguntam por que eu não me benzo como todos. Talvez não se perguntem sobre isso, mas eu imagino alguém reparando em mim.

A praça e suas luzes, suas pessoas, suas fontes de água. Quase como um Lego empoeirado, montado há anos, sem mover uma peça. Um senhor de cabelos brancos e meio calvo fala comigo, acena com o braço. Eu paro. Quero ser gentil, dar ouvido a todos. Ele me pergunta se não quero livros, bons livros. Fala sobre os livros, diz que são difíceis, diz que pagou muito por eles com todas as tarifas dos correios. Sinto muito, senhor. Eu não quero seus livros, mesmo que tivesse dinheiro. Acho que ele quer uma companhia, alguém para falar sobre livros. Alguém para falar sobre João Cabral de Melo Neto em meio àquelas merdas de pássaros que cobrem o banco. Senhor, venda seus livros para as velhas, elas precisam mais do que eu, pensei enquanto olhava um pardal morto perto dos meus pés.

Atravesso outra rua, na calçada, pessoas bebendo. A TV do bar ligada exibindo futebol. A fumaça e o cheiro de carne queimada abraçam por um momento meu corpo. Próximo a uma farmácia, velhos jogando dominó, sentados, batendo as peças com força, eufóricos. Lembro do dia que eles começaram. Eram um ou dois, desanimados. Agora eu os vejo apostando dinheiro, cobrando os que devem, exaltando suas potencialidades no jogo. Como é bom ficar velho. Nós nem precisamos viver, apenas sobreviver.

Becos, ruelas, aperto. Divido as calçadas com cadeiras, bicicletas, caixas abandonadas. Desvio. Exercício constante. Queria poder seguir reto às vezes. Apenas fechar os olhos e seguir, mas sempre tem algo deixado no caminho pra gente tropeçar. Por isso mantenho os olhos abertos, o suficiente para enxergar meu reflexo num espelho ao fundo de um velho salão de cabeleireiro. Tesouras sujas, enferrujadas, atracadas nos dedos. Tesouras que decepam orelhas como borboletas carnívoras assanhadas. As luzes fracas de mercúrio, penumbras assombrosas. Minha sombra projetada no chão, menos apática que eu. Aí vem aquele cheiro, suave mas incômodo. O cheiro da madeira dos caixões que esperam seus cadáveres em pé. A madeira velha, no ponto, quase como um instrumento musical. Madeira influencia diretamente na afinação. E, no meio de todos aqueles caixões dispostos um ao lado do outro, um velho assistindo TV, sem camisa, sentado numa cadeira de balanço, vendo a novela sem preocupar-se com a morte. Como é bom ficar velho.

Passo por alguns mototáxis na esquina. Parecem solitários, sempre esperando alguém que requisite seus serviços. Eles olham ao longe e contam piadas escorados na parede. O asfalto vai ficando mais sujo, mais marcado. Sinto cheiro de peixe podre, cheiro de mercado municipal. Desvio de um pedaço de carne jogado no chão. Tomates, batatas, cebolas, todos esmagados, colados no piche, como se brotassem dele também. Tenho este como meu lugar preferido da cidade. Pelo menos é o mais honesto, sem maquiagem alguma. Caminho ouvindo os gritos da sujeira emanada pelos poros do lugar. É a verdadeira pele que vem à tona empapada de saliva, de urina. Quem sabe sangue? Quem sabe esperma? Sinto meus pés sujos, minhas solas marcadas, meus pensamentos perdidos sob um véu negro intransponível. Um véu que cobre toda a cidade por mais iluminado e perfumado que seja o ponto.

De esquinas vivem os bêbados. Sempre um bar aberto esperando o desejo por aguardente. E os clientes estão lá, sedentos por algo que lhes faça esquecer o dia. Alguns fazem bem, ficam no caminho, entulhados no chão, quase como as caixas esquecidas. Perto deles, uma poça, e na poça, um gatinho. Deve ter esquecido de comer e bebeu muita água. Lá, apodrecido, respeitoso. Só fede quando bate a brisa. E ele me deixa passar. Bares, sinais de trânsito, mercadinhos, um móvel antigo bloqueando a calçada, buracos, tampas de garrafas, cigarros, tijolos... Eu é que me embebedo dos personagens cotidianos que vivem intensamente meu caminho perdido. Nunca poderei lembrar de apenas um, somente de todos. Porque eles compõem e personificam a sinceridade do fracasso. Programado para parar em um ponto, eu simplesmente deixo de andar e me sento naquela cadeira da faculdade, inodora, mas quase tão fúnebre quanto a madeira dos caixões.


6 comentários:

Anônimo disse...

Adorei seu texto, eu realmente o li. Detalhista como sempre. :)

As partes que eu mais gostei foram:

"Apenas corro como alguém que anda sem parar. Corro como alguém que vive parado. Correr para sempre é nunca mais se mexer".

"Como é bom ficar velho." - Três vezes.

"(...) mas sempre tem algo deixado no caminho pra gente tropeçar".

"De esquinas vivem os bêbados. Sempre um bar aberto esperando o desejo por aguardente".


Beijos, cuide-se! :*

Igres Leandro disse...

Ah, obrigado! E eu fico verdadeiramente feliz em saber que você leu e gostou. Principalmente por reparar nos detalhes.

Beijos, e cuide-se também, moça.

Ira Lemos disse...

eu li o texto e acompanhei você durante todo o percurso. Já que eu sei exatamente onde é cada lugar escrito no texto. parecia q eu tava indo contigo e via tu com um caderno na mão andando e escrevendo tudo isso. Amei o modo como você encerrou ele. de verdade.
Beijos Ig.

Igres Leandro disse...

Ira, obrigado mesmo! É gratificante poder criar algo e saber que se transmitiu a sensação pretendida. Beijos!

Unknown disse...

eu li teu texto,achei muito lindo,todo detalhista.
nao sou muito de falr com ninguem ou sair mandando comentarios ou elogios,mas sou uma fã de detalhes e voce faz isso muito bem.;
gostei mesmo .

Igres Leandro disse...

Que maravilha, Helo! Muito bom saber que alguém - criteriosa como você, pelo que diz, haha -, gosta do que eu escrevo. Espero que volte por aqui.