domingo, 5 de setembro de 2010

ESTAMIRA RECICLANDO IDEIAS


Há muito, muito tempo, eu precisava escrever um texto sobre o documentário “Estamira”. Precisava, porque o filme realmente mexeu comigo. Considero a produção um novo clássico. A gente às vezes fica sem tempo, tem preguiça ou simplesmente deixa para depois, mas, nada disso importa, porque um dos grandes méritos de “Estamira” como clássico é abraçar a atemporalidade. Quem assistiu, pode rever e aprender mais, quem não assistiu, deve.

A princípio, Marcos Prado filmaria apenas sobre o lixão de Gramacho, no Rio de Janeiro, mas ele então conheceu dona Estamira, doente mental crônica, de 60 anos de idade (na época das filmagens), que por lá vivia e que de lá tirava sua subsistência, se é que pode se chamar assim.

Photobucket

Lembro-me que, quando assisti pela primeira vez, eu não sabia ao certo sobre do que tratava o filme. Depois de imagens contrastantes entre o céu límpido e o chão tomado por todo tipo de lixo, Estamira começa a falar para a câmera. Achei que fosse uma coadjuvante, alguma moradora da localidade que compartilha seu breve depoimento de vida e vai embora. Ledo engano! Estamira, que dá nome ao filme, como não podia ser de outra maneira, é a estrela que irradia a obra do início ao fim, diferenciando profundamente esse documentário de tantos do gênero que, sob a égide da denúncia, focam sempre suas lentes para a crua realidade brasileira, sem passar de mais do mesmo, numa tentativa débil de consternar e assim obter algum sucesso.

Photobucket

O documentário chama a atenção porque faz o que a maioria das pessoas nunca faria. Primeiro, invade o lixão, que é, definitivamente um mundo à parte. Depois, dá voz a alguém que, provavelmente, nunca foi escutado em sua vida. E, neste ponto, o que mais tocou-me não foi a abordagem sobre a pobreza, a miséria, as disparidades sociais e mais aquilo que todos andam cansados de ouvir falar. O gancho que se fixa em seu peito e o aproxima cada vez mais daquele cenário é o fato de percebermos a quantidade de razão nas palavras de Estamira. A impressão que se tem é de que, em algum lugar, no subsolo ou escondido em alguma barraca, há um professor particular de filosofia que dá aulas àquela senhora.

Entre falas revoltosas contra Deus e o mundo, Dona Estamira diz o que muitos já pensaram falar mas não tiveram coragem o suficiente. O selo eternamente lacrado de outras bocas se rompe na sua. São os “trocadilos”, o controle remoto e os inversos que se manifestam.

Tanto lixo sob os pés pode transformar qualquer ser humano definido como mentalmente estável e normal em alguém esquizofrênico. Porém, há também uma relação interessante que aquele espaço proporciona. Parte do que Estamira come vem do lixo, suas roupas, sua pele, seu cabelos, também são depósitos de lixo. Vai-se acumulando de um jeito irremovível. E é ali, sobre todo tipo de sujeira, que sua loucura, insustentável na moradia corpórea, pode ser extravasada de forma plena, talvez por isso, Estamira continue, na sua maior parte do tempo lá, mesmo depois de ter ganhado uma casa do diretor do filme, Marcos Prado.

Photobucket

É como um quadro que consegue ser belo e feio ao mesmo tempo. Características indissociáveis de um mundo com suas próprias leis. Por fim, o espectador ri, comove-se, revolta-se e dirige o olhar para si mesmo depois de escutar um discurso bruto e necessário, sem que a loucura pessoal de cada um seja capaz de lapidá-lo e varrê-lo para debaixo do tapete. Os mais sensíveis conseguem enxergar uma pérola.

Nota máxima! Cinco Andys para essa obra-prima:

PhotobucketPhotobucketPhotobucketPhotobucketPhotobucket

4 comentários:

Anônimo disse...

Você me recomendou um tempão atrás.
Assisti ao filme e pirei.
Cê tá todo certo.

Agamenon P. disse...

Sempre teimo em achar alguma coisa que nunca tinha visto por aqui.. Dessa vez foi diferente; tô fazendo um trabalho sobre o Marcos Prado, sobre fotografia e talz, o post vai me servir muito.. ^^'

Valeu Igres..

Anônimo disse...

Uau! Era algo assim que sempre quis escrever para tentar dar contornos ao que me perpassou quando vi esse documentário, mas jamais havia conseguido me aproximar tanto quanto agora, lendo você.
Obrigada por compartilhar partes de você tão intensamente. Gostei do blog, é forte, é leve, doce e amargo numa mistura só.
Fui capturada pela sua descrição de si mesmo e agora fui irremediavelmente aprisionada.

Igres Leandro disse...

Que ótimo, M.S.! É reconfortante escrever um texto e saber que ele pode tocar tanto alguém. Espero que você leia os outros espalhados nos arquivos e goste também. Abraços!