segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Ilha

Este é um conto meu dedicado aos que vivem em ilhas:

Não sei há quantos dias estou aqui, nem sei como vim parar aqui. Mas agora, respostas são as coisas com as quais eu menos me importo. Sei que meus pés doem e as minhas costas também. Para qualquer direção que eu olhe, só vejo o mar me rodeando. Quando fecho os olhos, escuto o barulho das ondas, e, às vezes, de algum pássaro. Dificilmente capturo animais para me alimentar. Vivo de frutinhas. Bebo água da chuva. Parece que estou sempre dopado, com uma sensação de desmaio que nunca me abandona e aumenta quando o sol forte incide na areia. Tenho apenas um sapato do par. No outro pé, enrolei um pano velho. Cada dia caminho menos, e cada dia afundo mais na areia. Com as pernas estendidas e as mãos para trás apoiando meu corpo, eu fico pensando e a imagem das coisas vai ficando turva, parece que tudo aquilo não passa de uma ilusão de óptica. Como se estas palmeiras, estas folhas, esta imensidão de areia, tudo isto, fosse um sonho ruim.

Fico tanto tempo sem nada dizer, que tenho até medo de não conseguir mais falar. Quando eu era criança, achava que ficar por um longo período num quarto escuro me deixaria cego. Eu tinha de me certificar: abria os olhos e procurava algum ponto luminoso. Era um alívio saber que ainda podia enxergar. Aqui, o que eu enxergo é o que me cega, e não falo apenas do sol. Meus lábios rachados, feridos, partiram-se como se tudo o que eu tivesse para dizer fossem lâminas afiadas. Talvez eu não consiga mais falar, talvez minha língua dê um nó e eu morra asfixiado. Tenho medo. Prefiro não tentar. Apenas pensar nas palavras me contenta e aumenta também uma dor que me rasura inteiramente por dentro. É uma dor tão grande que criei até palavras para descrevê-la, mas não as escreverei aqui, porque já esqueci delas, não pela dor ter passado, mas porque sempre crio novas palavras quando ela dói mais do que o comum.

Os monges são todos uns mentirosos. A única forma de se chegar a um estado de elevação espiritual onde não passe pela nossa cabeça nenhum pensamento é morrendo. E antes de morrer, a gente pensa muito na morte. Ainda não me perguntei por que estou vivo e por que permaneço vivo. Talvez seja porque morrer me inspira alegria, e meu estado é o de mais profunda tristeza.

O vento passa tão forte pelos meus ouvidos que é como se eu pudesse escutar por um segundo o turbilhão de vozes perdidas da cidade grande. Por um momento acredito que todas as vozes vêm até mim, mas nenhuma chega intacta. Elas vão perdendo substância e o que sobrevive é um fantasma incomunicável.

Não penso no meu passado. Não penso no asfalto enquanto toco a areia. Não penso em comida japonesa enquanto como uma manga. Não penso nas pinturas da sala da minha casa enquanto olho o céu. Não penso na cerâmica gelada do vaso sanitário enquanto procuro uma moita. Eu só penso no que eu não fiz, no que eu tinha vontade de fazer. Penso no filme que saiu de cartaz e não assisti, no filhote de labrador do pet shop que sempre latia quando eu passava e que não comprei, no programa de exercícios que desenvolvi mas que nunca segui, naquele disco velho que tocava no brechó da esquina. Quem era mesmo que cantava? Penso muito nessas coisas agora intangíveis. Penso em um nível que chego à vertigem, que me dá um suor frio e meus olhos se enchem de lágrimas. Penso muito, principalmente na moça da lanchonete, a Elen. A moça que eu quis pra mim mas não tive coragem de confessar isso a ela. Lembro dos seus cabelos castanhos escuros, dos seus lábios rosados e pequenos, dos seus olhos intensamente pretos, do seu jeito dócil de falar quando me servia um sanduíche. Lembro do seu crachá: Elen. Era bonitinho, aquilo, fixado no seu peito: Elen. Refletia a luz fluorescente. Mas tudo entre eu e Elen ficou apenas nos negócios. Por isso eu penso muito. Muito no que eu não fiz.

Agora eu estou fazendo, pra não pensar depois. Acho que se eu pudesse fazer tudo o que não fiz, voltaria atrás em relação ao Monge. Não seria necessário morrer para esvaziar minha caixa encefálica. Eu faria tudo, tudo que deixei para trás e me sentiria pleno, como um babaca. Agora estou fazendo, escrevendo neste papel, com esta caneta de hotel. Não quero que pensem que isso é um S.O.S. Não estou pedindo ajuda, só estou fazendo algo por mim, a única coisa que eu ainda posso fazer. Então, se alguém vir isso precipitadamente, eu não existo mais. Virei terra, folha e água. Terra, folha, água e papel. E quando eu estiver guardado numa instante, raro, façam coisas, as coisas de vocês. Vai garrafa, continua! Ainda tens um rumo a seguir.

Igres Leandro

2 comentários:

Anônimo disse...

A única lembrança que nos resta é a não-lembrança.

Bruna Rasmussen disse...

você é foda, meu bem. consegui sentir a calma desesperadora de uma ilha no meio do nada e a nostalgia pungente da culpa. que o agora mais que tudo.