terça-feira, 24 de março de 2009

Companhia de Ninguém



Escrevi este conto durante o período que passei quase um ano morando num apartamento em Juazeiro do Norte, longe de qualquer pessoa, sem sair de casa e sem internet. Acho que sou indiferente a ele. Talvez isso seja bom, pois já não parece tanto que eu o escrevi.

Companhia de Ninguém


Duas e meia da manhã. Lua cheia, bonita. Céu sem estrelas. Dois dias seguidos sem dormir. Hernandez olha pela janela e observa o cenário perfeito para uma saída com os amigos. Quem sabe, mesmo um encontro a dois. Seria ideal se o silêncio vindo de fora não lhe trouxesse uma amargura crua. Nem mesmo um maltrapilho vasculhando latas de lixo na rua para se observar. Para ceder um pouco de longínqua companhia. Não mesmo. Seria perfeito se o silêncio de fora não trombasse com o som estridente de dentro, da Televisão.

Hernandez sabia que um dia isso ia acontecer. Que os amigos, que os amores, que os parentes, todos eles, todos eles iam de se esvair. Só não sabia que seria tão rápido. Só não sabia que seria antes dele ser atropelado e passar o resto da vida sendo alimentado por tubos.

Os estranhos lhe significavam os restos da alma humana que pairava sobre seus devaneios. Estranhos que, pensando bem, poderiam ser tão afáveis, tão cheios de respostas e correspondentes ao modo de vida de Hernandez. Este, já era mais um de seus devaneios. Estranhos suspensos sobre seus devaneios. Eles permaneciam inabaláveis, com sua vida a seguir, sorridentes e atarefados. Bons amigos passeando com o cachorro, boas esposas indo embora pela vitrine. Todos expressavam virtudes, maquiavam o que de mau lhes restava e pareciam normais. Abundantemente normais. Relaxados com a vida e com os dias que estavam por vir. Hernandez não. Não conseguia: barba por fazer, ombros caídos. Descuidado. Ele tropeçava dezenas de vezes ao dia. Em um desses, esbarrou sem querer num poste, quase quebrando o ombro. Ficou fascinado por seios medianos - mas tão empinadinhos - de uma moça que vinha em sentido contrário ao seu. Ele não devia ter feito aquilo. Agora, obviamente ela pensa “Homens, sempre deixando levar-se pelo instinto.” Mas ele não! Ele era sensível. Sentia muito pela situação. Sentia muito pela mocinha ir embora levando seus seios simétricos e uma imagem errada de sua pessoa.

Como todos os pensamentos que vêm e vão, mais um se fora: o da mocinha de seios arrebitados se fora, dando lugar a “por que tudo anda tão vazio?” Hernandez se via impotente a tentar responder. Olhava pela persiana buscando explicações. A essa hora da manhã só acharia um ambiente desértico. Nem mais os acidentes do cruzamento, que lhe acordavam feito despertador, ocorriam. Lembrava que, há uns meses, estes eram muitos. Crash pra lá e crash pra cá. Retrovisores de um lado, carne de outro. Não demorava e as pessoas se aglomeravam, causavam burburinho. Olhavam a vítima agonizar. Um ou outro samaritano ligava para a emergência. O resto vinha mais pela curiosidade. Chegavam de mansinho, compartilhando olhares sádicos. Hernandez ficava apoiado no parapeito da janela, observando toda aquela movimentação. Todos aqueles cochichos e inquietações. Chegava a emergência e acabava a festa. A multidão dispersa retornava de onde veio cheia de más e fresquinhas notícias para contar.

A prefeitura pôs postes, melhorou a sinalização, revogou a lei de Murphy. As pessoas ficaram recatadas. Hernandez não saltava mais da cama ainda enrolado nos lençóis para olhar pela janela. Ficou mais Zen só fitando quatro paredes. Quatro ou quantas fossem, não importa. Sempre pareciam um quadrado, uma caixa. E das formas geométricas, ele preferia a esfera. Tinha alguma ligação com o futuro. Prever o futuro. Atrativo, quando este parece eternamente o presente.

O destino aprontou com ele. Não previu a falta de ração no aquário esférico de Henry, seu peixinho dourado. Hernandez esqueceu do presente tão latejante e acabou deixando morrer a única forma de vida que não se resumia a pixels em seu lar. Pobrezinho de Henry que, molhado, acabou morrendo seco de fome. Era algo para se pensar. Se pensar nessa ação tão impensada. “Isso, se culpe, Hernandez, se culpe...”, pensava, num momento de autopenitência. Momento de luto. Esvair mais um peixinho pela privada ou experimentar o gosto do amigo grelhado na manteiga? Sem mais cerimônias, ele deixou Henry lá, deitado sobre o barquinho pirata que servia de adorno. Depois pensaria em algo mais elaborado. Uma caixinha de fósforos cheia de flores para se sepultar no jardim – caso houvesse jardim –, ou, quem sabe, um vôo literal até as nuvens, amarrado numa pipa. Planos de uma última homenagem merecida ao amiguinho de sempre que nunca abriu a boca para reclamar. Que nunca usou as guelras para outra coisa a não ser para puxar oxigênio. Uma pena.

A Televisão trazia as pessoas para dentro de seu apartamento. Um pouco de gente, direito dos satélites, das ondas fantasmas. Exatamente três da manhã e os canais na ativa. Explosões de hormônios, de sexualidade. Explosões de religiosidade, de fanatismo. Explosões de carros, explosões de casas. Explosões de jóias, de quilates. A grande explosão na guerra de audiência daqueles insistentemente acordados. Todos explodindo, um atrás do outro. Um atrás do outro, como num trem a ponto de descarrilar. Era frenético, psicodélico. Hernandez recorreu à TV, esperando o sono chegar, esperando o sol raiar, o dia nascer, a hora do rush ferver, e encontrar alguém para ajudá-lo a consumir uma noite.

Seus olhos ziguezagueavam involuntariamente. Pareciam querer saltar dali. Correr de sua face e se divertir à luz dos outdoors. Recostado numa poltrona aconchegante, ele virou a cara. Desviou os olhos enérgicos da TV. Mantiveram-se abertos, como se nas pálpebras houvesse pregos pontudos. Ficou só com o som e as cores – quase cromoterápicas – impressas no ambiente escuro.

“Você que está perdido, que está largado, que não consegue mais ser feliz, não consegue mais ter um amor, não consegue estabilidade financeira. Venha até nós e desamarraremos o seu nó. Cristo desamarrará o seu nó – retificou o pregador. O endereço é...”

Hernandez estava melancólico, mesmo assim, conseguiu sorrir com a proposta do pregador que se esgoelava pedindo para que os telespectadores levassem suas roupas suadas com nós à igreja mais próxima. Muitas. Muitas igrejas. Pareciam redes de hipermercados espalhadas por todos os lugares.

Pegou o controle. Mudou de canal. Shopping na TV, mais shopping, Frankenstein, duas loiras peladas se encharcando. Estava fatigado daquilo e não podia dizer a ninguém. Pior, não havia ninguém. Hernandez estava silenciado por essa liberdade, ou esse vácuo que o rodeava.

Silêncio. Um silêncio ensurdecedor. A Televisão sem som. Apertou sem querer com o cotovelo o mute no controle remoto. Nem se deu conta. Apenas relaxou. Esticou os pés ainda de meias. Fez um carinho na nuca.

Pela janela, o asfalto preto. Velho. Linhas brancas que nunca se apagam. Madrugada e pessoas correndo com peças de banho pelas ruas. Tudo bem que nunca fazia frio, mas era extravagância demais, até mesmo para uma festa temática. Sua festa? Pelo menos no bote salva-vidas que um homem de peito depilado, só de calção de banho, carregava. Estava escrito “Hernandez”. Que bela homenagem! Uma bela homenagem de amigos que Hernandez nunca ouvira falar. Isso que é dedicação. Impressionou-se mesmo foi com a sósia da Pamela Anderson. Era um clone fiel.

Estava feliz. Hernandez não podia mesmo conter o sorriso no rosto. Ele não gostava disso de mudar da água pro vinho. Preferia manter certo desdém no início e depois ir se derretendo aos poucos, se entregando aos poucos. As pessoas gostavam e também lhe davam mais valor. É o charme de chegar atrasado. De deixar todo mundo te esperando.

Só precisava interfonar para o porteiro e permitir a entrada de todos os seus mais novos amigos. De corpos esculturais, descolados e com óculos de sol, eles cheiravam à praia. Cheiravam à maresia. Todos lá embaixo, radiantes. Loucos para subir e comemorar a bênção de um bom companheiro.

“Alô, Edmar”, disse Hernandez, ao interfone. Supunha que fosse Edmar do outro lado da linha.

“Alô...”, não era. Voz feminina. Falha, fina.

Edmar poderia estar em um momento íntimo. De certo, recebeu adiantado e contratou logo os serviços de uma prostituta. Estava com a razão. Não ia era ficar sozinho. Assim como Hernandez, que não adiaria sua festa por nada. “Então, Edmar, fique com sua festa que eu terei a minha” ele pensou.

“Desculpe incomodar, mas, por favor, o Edmar está?”

“Sim... está” hesitou ao telefone.

“Passe para ele, sim?”

“Ele não pode atender. Matou-se agora há pouco. Enfiou uma chave no ouvido e foi lá dentro. Disse que queria abrir a mente.”

Hernadez emudeceu. Impossível saber o que dizer. Apenas largou o interfone e caiu de costas no sofá. Tudo bem Edmar ter se matado. Tudo bem mesmo. Aquele maldito porteiro inútil. Agora doía era a cabeça de Hernandez. Do silêncio a um zumbido ininterrupto, grave e poderoso, tremendo todo o crânio.

Olhou através da janela para seus novos amigos. Buscando mais uma ajuda, quem sabe. Mas a língua enrolou. Só escorria baba da boca. Continuou olhando, mostrando seu estado. Uma imagem vale mais do que mil palavras. Ninguém a se manifestar. Estáticos os manequins permaneciam. Cheiravam praia, cheiravam maresia. Cheiravam sangue com seus maiôs vermelhos. Alto-mar e tubarão. Silêncio com o caos instalado. Asfalto morto e sangue semivivo. Hernandez arquejou. Espirrou. 160 km/h de um trem passando por seu nariz. Única e exclusivamente pelo seu nariz. Mandou para fora, seu cérebro, ainda preso por um só fiozinho de carne. Aquele fiozinho de carne. A linha entre a existência como ser e o pó. Teria morte cerebral comprovada por um maldito médico, seu vizinho, que cortava perus de transexuais nas operações de mudança de sexo e os fritava no jantar.

Hernandez tentou pôr a cabeça no lugar, ou melhor, pôr o cérebro no lugar e buscar a melhor saída.

Tudo tão absurdo e horrendo. Não se sabia nada sobre a melhor saída. Só se escutou um estalo vindo da tomada da Televisão. Umas faíscas saltaram fora. A imagem tremulou e retornou ao que era. Hernandez deu por si, assustado, sem o cérebro por um fio, sem Pamela Anderson e seus galões de silicone, sem seus amigos praieiros, sem Edmar de mente aberta. Mas ainda os sentia, como membros fantasmas. Parecia algo verídico que por ali passara.

Hernandez, desnorteado, sem saber o que, quem, para que, onde, quando. Sem saber de nada, do nada, estava bem em frente ao computador, ligado. A luz perturbando seus olhos. Vira uma vez na TV que é recomendável, na hora do sono, ficar longe de qualquer aparelho eletrônico que possa lhe estimular, lhe excitar, fazer-lhe ficar ligado, cheio de informação. Vira também o estudo das ondas eletromagnéticas. Ondas de rádio, de Televisão, ondas da rede mundial de computadores, serviços de telefonia móvel... Invisíveis, trombando, aglutinando, repondo informações e, quem sabe, doenças. Nada comprovado, mas Hernandez tinha alguns palpites.

Quase o terceiro dia sem dormir. Sem um cochilo sequer. Olhos secos. Teve alucinações de olhos abertos. Seria mais reconfortante se houvesse sido um pesadelo. Um pesadelo toda noite. Ele trocaria. Trocaria pelo direito de dormir. Se bem que, a essa altura, os pesadelos já se faziam presentes, e reais.

Era uma noite enorme. Daquelas que se pode quase ter a certeza de que o sol morreu. Hernandez tinha essa certeza. Parecia um fantoche, só esperando a próxima ordem dada por ele mesmo. Dada pela nuvem de estranhos que, a essa hora, dormia tranquilamente. Dada pelas ondas eletromagnéticas que vagavam solitárias.

A próxima ordem era estranha. Na tela do computador, ele viu um formulário digitado e preenchido. Tudo sobre sua vida. Das maiores futilidades possíveis ao seu eu mais profundo e íntimo. Uma foto na capa, Hernandez, sorridente, bonito. Bela iluminação. Mas como seria capaz de digitar tudo aquilo em transe? Psicografia?

Gostava da macarronada, odiava gatos e desenhos japoneses. Mulheres? Ah, sem tantas exigências. Apenas uma que conseguisse dormir nas horas certas. E trabalhar nas horas certas.

Imprimiu o que pôde, até a tinta acabar. Pôs as impressões em volta do braço e saiu por aí. Ninguém na rua. Só a madrugada densa de companhia. Hernandez festejando, com seus papéis, esvoaçantes. Sujando as ruas que pareciam ceder todo seu espaço para apenas um ser humano. Viu-se um vira-lata ao longe rasgando uma das folhas, partindo sua face impressa em pedacinhos.

Hernandez chegou em um poste e quis colar um. Não tinha cola, mas experimentou como ficaria sua foto sob a luz fraca, destacada sobre o poste, sobre os anúncios políticos e pichações. “Bem”, ele pensou. Lembrou dos avisos de “procura-se”, nos filmes de velho oeste.

Depois de tudo, sentou-se. Sabia que acharia amigos que o leriam por aí. Melhor, eles o encontrariam. Embaixo de bancos, pendurado em árvores, grudado em janelas, rodando em pneus. Ele estava em todos esses lugares. Só precisava de uma conexão. De alguém que cedesse dois minutos de seu dia para ler uma folha amassada e pisada no chão. Eles o encontrariam, de uma maneira ou de outra, o encontrariam. Quantos garis, trabalhando no lixo, não gostariam de levar sua história para casa, de lê-la no trabalho. Hernandez gostou da idéia. Salivou pensando o quão doce seria. Caiu em posição fetal e dormiu. Quem sabe alguém não o encontraria?


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